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A última das batalhas

Panema vivo: cuidaremos de você!

Transparente, encantador, generoso e liberto.

Barreiras só a quem ousar barrá-lo!

Em 2011, a Energias Complementares do Brasil Geração de Energia Elétrica S/A, ora denominada EC Brasil, empresa com sede em Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul, constituída em 2006 com capital social de R$ 1,45 milhão, desconhecida nacionalmente e sem nenhuma expertise na área de hidrelétricas, apresentou proposta de construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) em Piraju.

A proposta de uma nova usina hidrelétrica gerou muitos questionamentos e dúvidas na comunidade, mas há respostas convincentes para todos os questionamentos. Quem se interessar por aprofundar-se no tema, sugiro ler meu livro Energia das Águas, que possui um capítulo inteiro dedicado a esse tema.

Piraju se prepara para aquela que pode ser a mãe e a última de todas as batalhas: permitir ou não a obra na cidade. O local pretendido encontra-se no último trecho de calha natural do rio Paranapanema, paisagem deslumbrante onde estão o Salto Piraju, quedas d’água, corredeiras e mata ciliar primária remanescente do bioma Mata Atlântica, que protege as águas e a rica biota local.

O Salto Piraju, também chamado de Garganta do Diabo, é a certidão de nascimento da Estância Turística de Piraju, patrimônio histórico da cidade. Localizado no único trecho urbano do rio Paranapanema, ainda mantém suas características originais. Essa paisagem deslumbrante seria extinta com a implantação de uma nova usina no local.

Tudo indica que a maior parte da sociedade pirajuense não quer a nova usina. Esse sentimento está expresso em diversos movimentos da sociedade e poder público local, que produziram um vasto acervo de leis e posturas que impedem novas usinas. E também em todo histórico das hidrelétricas existentes na região, as quais pouco contribuíram para o desenvolvimento da economia local, de forma sustentável.

Para a construção de empreendimentos ao longo do rio Paranapanema faz-se necessário obedecer ou, no caso de novas usinas, modificar ou revogar diversas leis e posturas municipais de proteção ao maior patrimônio pirajuense, arcabouço construído ao longo de décadas de engajamento da comunidade local. São elas:

1. A lei que instituiu o Plano Diretor (Lei no 2.792, de 8 de junho de 2004) e define que a área pretendida para usina é considerada de preservação ambiental e para desenvolvimento do turismo, além de preservar uma faixa de 500 metros ao longo das margens do rio.

2. A Lei Orgânica do Município de Piraju, que impede a construção de novas usinas hidrelétricas no rio (art. 187).

3. A Resolução do Conselho Municipal de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural – CMMAPC (Resolução no 1, de 2 de agosto de 2002), que tomba 7 km do trecho de calha natural do rio, por ser dotado de elementos de valor cênico, paisagístico e cultural para a comunidade.

4. A Lei do Interregno (Lei no 2.654, de 12 de setembro de 2002), que fixa o prazo de 20 anos para se discutir ou não a construção de novas usinas hidrelétricas.

5. A Lei de Criação da Unidade de Conservação de Proteção Integral (Lei no 2.634, de 26 de junho de 2002), que criou o Parque Natural Municipal do Dourado. Em agosto de 2014 o parque foi incluso no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, pelo Ministério do Meio Ambiente.

6. Lei Complementar nº 143, de 26 de junho de 2013, que discorre sobre a política ambiental, em especial seu artigo 10, inciso XXIX: “vedados o uso industrial, empreendimentos agroindustriais, usinas hidroelétricas e parcelamento do solo para fins urbanos ...”.

7. Diretrizes da política municipal de meio ambiente, do Sistema Municipal de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural de Piraju (SISMMAP), que definem o rio como patrimônio dos cidadãos.

Ainda que a sociedade pirajuense decida abrir mão de todo esse importante cabedal institucional em face de uma nova usina em suas águas, deve-se obter a aprovação estadual pelos EIA e pelos RIMA e vencer o artigo 196 da Constituição do Estado de São Paulo, que inclui o vale do rio Paranapanema dentre os espaços territoriais especialmente protegidos e assegura sua preservação ambiental.

Há que se obter também aval do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), visto que o rio Paranapanema é de legislação federal. Nesse âmbito, está em vigor a Lei do Código Florestal de 1965, ampliada pela Lei no 7.511/1986, que define uma APP como as faixas que vão de 30 a 200 m ao longo de cursos d’água.

A obra de uma nova usina fere também o comprometimento internacional do Brasil como signatário da Convenção de Ramsar, ratificada pelo Decreto no 1.905/1996, no qual o país se compromete com o desenvolvimento de uma política especial de proteção de zonas úmidas. Essas áreas têm como limite a linha máxima das enchentes.

O arcabouço institucional municipal é o retrato da formação da consciência ambiental do povo pirajuense ao longo de décadas. Os temas ambientais são espinhosos e foram discutidos à exaustão entre comunidade e poderes constituídos, e devidamente aprovados pela vontade soberana e democrática da maioria da população.

Em um regime político democrático, esse status ambiental pode mudar, desde que a maioria do poder legislativo e o executivo assim entendam, mas nunca sem antes ouvir a voz da coletividade – que já se mostrou, em sua maioria, contrária a novas obras de usinas na região.

Todos os movimentos contrários à construção de uma nova usina em Piraju, entre 2010 e 2012, surtiram efeito. Em julho de 2012, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb)  enviou à EC Brasil um ofício que comunica a impossibilidade da emissão do Termo de Referência de Avaliação Ambiental de Empreendimento para a denominada PCH Piraju II, e arquivou o Processo Impacto no 124/2012.

Essa decisão foi referendada também pela Aneel, por meio da Superintendência de Estudos Hidroenergéticos (SGH) em agosto de 2012, que arquivou o Processo no 48500.002.154/2010, em função da existência dos inúmeros recursos legais que impedem tal obra.

Mas apesar de tantas decisões desfavoráveis, o Ministério Público do Estado de São Paulo - MPSP, por meio da Procuradoria Geral de Justiça - PGJ, instaurou a partir de representação da empresa EC Brasil, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn, para suspender a eficácia das posturas legais municipais que protegem o trecho de corredeiras do rio Paranapanema, por entender que são inconstitucionais.

A ADIn considera essas posturas legais uma afronta aos princípios da harmonia e independência dos poderes consignados pela Constituição Federal do Brasil. Tem como embasamentos principais os seguintes tópicos:

- ao proibir a construção de usinas hidrelétricas, limitar e condicionar a exploração do potencial hidroelétrico do Rio Paranapanema no âmbito do Município de Piraju, os atos normativos impugnados violam o princípio federativo, haja vista tratarem de matéria de competência da União.

- trata-se de usurpação da competência legislativa privativa da União com violação do princípio federativo (artigo 1º da Constituição Estadual), pois, o Rio Paranapanema por banhar dois Estados e pelo seu potencial de energia hidráulica é bem da União (artigo 20, III e VIII e 176 da Constituição Federal). Compete a União, portanto, a exploração, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, do aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos (artigo 21, XII, b da Constituição Federal). Não é o Município competente para legislar a respeito de águas e energia (artigo 22, IV da Constituição Federal).

- de outro lado, o ato do tombamento traz limitação e condicionamento ao uso e aproveitamento do trecho tombado do rio, submetendo a aprovação e licenciamento pela municipalidade. Trata-se de inconstitucional limitação não só ao exercício da competência legislativa da União, mas ao próprio uso e regulamentação de um bem de seu domínio.

- ao proibir, limitar e condicionar o licenciamento municipal a exploração do potencial hidroenergético do Rio Paranapanema na área do Município de Piraju, o legislador municipal extrapolou sua competência limitada a disciplinar matéria de interesse predominantemente local.

- entende também o Ministério Público que compete ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) as regulamentações para concessão de licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras (art.8°, da lei n° Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981). Cabe ao município somente atuação administrativa para a promoção do licenciamento ambiental em matérias relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.

- não é o Município competente para regulamentar a utilização do Vale do Paranapanema, espaço territorial especialmente protegido pela Constituição Estadual, nos artigos 196, 205 e 212.

- a competência suplementar do Município aplica-se, nos assuntos que são da competência legislativa da União ou dos Estados, àquilo que seja secundário ou subsidiário relativamente à temática essencial tratada na norma superior.

- legislar sobre bens federais é assunto que não se situa no domínio normativo periférico dos municípios, razão pela qual por este motivo restaram violados os artigos 1,5, 10 e 144 da Constituição Estadual.

Baseado nesses preceitos o MPSP pediu em 10 de julho de 2014 liminar para suspender a eficácia da não concessão de autorização para a construção da usina pela empresa EC Brasil, até o julgamento do mérito da ADIn, mas tal pedido foi indeferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

No entanto, a ADIn foi julgada e acatada em 25 de fevereiro de 2015 pela maioria dos desembargadores e segue seu longo e complexo curso normal. A ADIn considera as posturas legais municipais uma afronta aos princípios da harmonia e independência dos poderes consignados pela Constituição Federal do Brasil. De acordo com a ADIN o Legislador Municipal extrapolou sua competência limitada. Começa um longo embate jurídico em instâncias superiores, vis a vis os inúmeros interesses envolvidos. 

A decisão mais prudente, equilibrada e de bom-senso seria esperar, conforme lei em vigor no município, o interregno de 20 anos para avaliar, com mais rigor e profundidade, os impactos de uma usina na comunidade, em função das já existentes.

Enquanto isso os movimentos sociais pirajuenses já se mobilizam para lutar pela manutenção das leis de proteção do rio e seu entorno. A terceira geração de pirajuenses certamente irá continuar o processo de conscientização ambiental das belezas ímpares da cidade, construída por longos anos de batalhas e mobilização popular da comunidade, que em passagens épicas e históricas, abraçou o Panema em sinal de amor, e proteção.

Uma decisão que poderia por fim aos embates da nova usina seria obter junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (CONDEPHAAT) o tombamento do último trecho de calha natural do rio onde se encontra a certidão de nascimento da cidade, o Salto Piraju. Esse trecho já está tombado por lei municipal respaldada pelo CMMAPC.

 

Cabe ao Poder Público pesquisar, identificar, proteger e valorizar o patrimônio cultural paulista, por meio do CONDEPHAAT e a Constituição Estadual de São Paulo, em seu Artigo 260, item IV prevê que constituem patrimônio cultural estadual: “... os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.

 

Após esse passo, deve-se tentar obter o tombamento a nível federal junto Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. E porque não sonhar alto e também tentar obter chancela de tombamento junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - UNESCO?

 

O processo de tombamento é longo e complexo, mas a municipalidade pode se proteger rapidamente com laudos da fauna e flora e também do valor histórico dos diversos sítios arqueológicos existentes no território a ser alagado, principalmente os existentes no entorno do salto Piraju. As matas da bacia do Alto Paranapanema escondem, ao longo do leito do rio, espécies autóctones e sítios arqueológicos bem preservados da exploração do ouro e de missões jesuíticas no início do século XVIII, além de ruínas históricas de até 8 mil anos atrás.

 

Na bacia do rio encontravam-se tribos de duas importantes nações indígenas brasileiras: os Tupis-guaranis e os Jés. Marco importante na história do Brasil, o rio foi uma espécie de fronteira entre as Américas espanhola e portuguesa no início da colonização, e, por isso, abriga ao longo de suas sinuosas curvas um rico patrimônio histórico. O alagamento deste local encobrirá eternamente a história da cidade.  

 

As escolas de nível superior da cidade podem incentivar estudos e trabalhos de conclusão de curso que esmiúcem os impactos positivos e negativos das usinas no município e seu entorno.

O poder público municipal também deve contar com técnicos competentes para acompanhar e avaliar o que essas empresas de energia proporcionam aos seus munícipes. Deve desenvolver estudos de alto nível que possam elucidar o que é o negócio energético para o local e quais os caminhos para o desenvolvimento sustentável do município.

A região da bacia do Paraná, especificamente a do rio Paranapanema, está bem servida de energia e, na verdade, “exporta” eletricidade para outras regiões do país. O rio Paranapanema é um dos rios que mais energia produz para o Brasil – 5% do potencial brasileiro. Suas onze usinas têm capacidade instalada de 2.580 MW, suficientes para abastecer uma cidade do porte do Rio de Janeiro por um ano. Piraju, em particular, já contribui, e muito, para a sociedade brasileira com o fornecimento de energia.

Para o desenvolvimento da cidade em médio e longo prazos, não é estratégico a construção da usina no local proposto. Piraju consome por volta de 3,7 mil megawatt-hora (MWh), e as três usinas instaladas na cidade têm capacidade instalada de 210 MW, suficientes para atender mais de 20 cidades do mesmo porte durante um ano inteiro. Além do mais, no local pretendido, há rica biodiversidade, que será seriamente afetada e de forma irreversível, comprometendo uma série de serviços ambientais prestados pelo rio gratuitamente.

A EC Brasil não é uma empresa com suporte financeiro e com expertise suficiente para a obra e suas consequentes derivações ambientais de contrapartidas. O histórico de apenas cinco anos de vida dessa empresa é mais afim com energia eólica, nunca executou nenhuma obra de usina hidrelétrica e, nessa área, é uma ilustre desconhecida.

Uma usina altera paisagens de maneira irreversível e exige compromissos de longo prazo, que pode chegar a séculos. É uma temeridade entregar parte do maior patrimônio da cidade a uma empresa de pouca ou nenhuma expressão nacional na área. Os estudos preliminares e as respostas apresentadas pela EC Brasil aos pirajuenses denotam desconhecimento, despreparo e análise superficial da realidade econômica, social, histórica e ambiental do município.

A PCH não vai gerar recursos financeiros diretos ao município, somente poucos recursos do ICMS. A cidade não receberá a compensação financeira, pois esse encargo só é repassado onde há usinas com potencial superior a 30 MW. As outras usinas instaladas no município, pelo menos, geram um valor mensal perpétuo, cujos recursos podem ser canalizados para o turismo. O país receberá acréscimo inexpressivo de energia à sua matriz energética, e o município terá a certidão de nascimento de seu povo sepultada por definitivo e de forma irreversível.

Portanto, não é recomendável construir uma nova usina hidrelétrica no município nos moldes do que está sendo proposto. Curvar-se ao poder econômico para implantar uma obra à custa do patrimônio ecológico e cultural, maior riqueza do município, significa privilegiar uma visão estreita, de curto prazo, que vai contra as posturas de desenvolvimento econômico, social e ambiental sustentável.

Mais que nunca a comunidade tem novamente que se mobilizar para fazer valer sua vontade soberana. E que essa seja a última das batalhas, para que se possa desfrutar por definitivo da paz proporcionada pelas águas límpidas e já muito barradas do rio Paranapanema.